Perguntava-me eu:
"Porque é que a arte e o ensino estão tão distantes?
Será que se parte do princípio que os alunos não são capazes de se relacionar com arte? Será que os professores não são capazes de se relacionar com arte?
(Uma boa forma de valorizar a profissionalidade docente na área das artes plásticas talvez seja agir como artista, enquanto professor. Com isto não quero dizer que o professor deve negar a sua profissionalidade como educador, mas sim fazer dela uma arte também. No nosso caso, uma arte de falar de arte.)"
Estas questões não são novas, mas continuam a ser atuais. Na verdade, parece que muitos ‘professores de artes’ apenas se relacionam com o ensino em si, desligando-se da criação artística (apesar da sua formação artística). Muitos, concerteza, optam pela via do ensino como uma alternativa profissional à atividade artística, mas este caminho pode (e deve) ser muito mais do que isso para um artista que se propõe ser professor. Também um professor deve ser mais do que alguém que na verdade queria ser outra coisa... Todos merecemos muito mais do que isso: alunos, professores, artistas, a sociedade.
O conceito de artista-professor corresponde ao que faz sentido ser-se, como professor, no ensino artístico.
Considero que faz todo o sentido que um artista tenha em si a aptidão e a vontade de ser professor. Como, já em 1958, Lowe pensa sobre esta conceção, o desejo de ensinar e a exigência de criar são impulsos paralelos e não divergentes, que partilham um princípio comum: são viagens similares ao desconhecido e sustêm os mesmos frutos da auto-exploração e da auto-descoberta. Um professor, como um artista, forma-se segundo uma vocação, um compromisso total, pelo que o artista-professor pratica uma atividade una. (p. 11) O professor deve estar presente como artista no momento de educar, deve ensinar através da sua presença e atividade, tendo em conta que o desafio ou objetivo é que o aluno atinja um estado de liberdade interior e auto-conhecimento (self-awareness), de emancipação, (Lowe, 1958, p. 11) que lhe permita agir como artista ele próprio.
Arte e educação estão ligadas nas suas estruturas. A arte educa o indivíduo e a sociedade; pela arte educa-se e a educação é uma arte também. Mas arte nem sempre é educação e nem todos os artistas serão capazes de ser bons professores. Segundo Hausman, este conceito de que falamos, o de artista-professor, não significa que todos os artistas sejam efetivamente bons professores. Porém é certo que todos os bons professores demonstram uma considerável arte no desempenho da sua função. Esta ‘arte de ensinar’ refere-se ao controlo qualitativo exercido por um indivíduo na organização e comunicação de determinadas ideias e sentimentos. (Hausman, 1967, p. 14)
O conteúdo essencial do ensino artístico deve ser proveniente da natureza própria da arte e não do mero envolvimento em atividades manuais, artesanais ou técnicas artísticas; o uso de materiais e utensílios não origina por si só uma compreensão efetiva e uma real perspetiva sobre a arte. (Hausman, 1967, p. 14) O professor, não deixando de ser um especialista conhecedor de técnicas científicas através das quais explica e justifica o porquê da sua ação didática, toma decisões e atua de uma forma consciente, prática, critica, reflexiva, e ainda intuitiva, artística e sensível. Além disso, não existe uma fórmula ou definição para a qualidade em arte que possa ser transmitida aos alunos, não existe uma prescrição, tal como não existem prescrições para criar uma obra de arte. É exatamente nessa ausência de prescrições que nos devemos focar, embora sejam necessários métodos e estratégias criteriosamente definidos (no entanto flexíveis). A arte é por natureza aberta e metafórica. O que caracteriza um objecto de arte são as suas inerentes qualidades artísticas: a forma como o trabalho é organizado para incorporar a vivacidade, a intensidade e singularidade de uma ideia, qualidades que surgem necessariamente do compromisso individual na exploração da realidade. Por isso, cabe ao professor, também como artista, ajudar os alunos a compreender como outros artistas deram forma a ideias e sentimentos, como desenharam símbolos particulares para transmitir um significado, como usaram utensílios e materiais, mas no sentido de fazer com que cada aluno/ indivíduo encontre formas de materializar as suas próprias ideias e sentimentos. (Hausman, 1967, p. 14)
Hausman refere: uma obra de arte é fonte de uma vasta quantidade de informações, é um meio para compreender o contexto em que foi criada, resulta da manipulação de materiais e técnicas específicas e é contemporânea de uma série de outras obras de arte e documentos significativos. Assim, os estudantes devem tornar-se conscientes de fatos específicos relacionados com determinados artistas e obras, tomar consciência de tendências e sequências de períodos artísticos, de como os movimentos artísticos se influenciam e dão origem a outros movimentos, de perceber as suas origens e ramificações. Os alunos devem aprender a detetar princípios e generalizações. (1967, p. 15) O professor, ele próprio consciente da relação íntima entre a arte e o que ensina, deve encorajar esta tomada de consciência por parte dos alunos, para que possam fortalecer-se como indivíduos e como, eles próprios, possíveis artistas, munidos de um conhecimento mais aprofundado e próprio da arte, munidos de maneiras de fazer arte ligadas a eles próprios, ao mesmo tempo que melhor se conhecem a si mesmos. Um bom ensino artístico introduz um fluir de ideias e imagens, que ajudam os alunos a descobrir, selecionar, combinar e sintetizar ideias e imagens retiradas desse fluxo. (Hausman, 1967, p. 15) Para o conseguir, é fundamental e decisivo um efetivo ensino do conteúdo no ensino artístico, o conhecimento e compreensão sobre a arte, sobre os processos artísticos. É o artista, como professor, que melhor pode fazê-lo.
É o artista-professor quem melhor pode ter um conhecimento válido sobre os materiais que estão a ser usados, cujas características ditam as suas formas potenciais. E o entendimento destes materiais, segundo Donald Schön, é o mais importante (Walker, 2004, p. 6); para ele, a ‘arte’ de ensinar implica uma reflexão-na-ação que se forma no diálogo constante com os materiais de uma situação (Schön, 2000, p. 124) ), em que o professor se coloca em diálogo consciente e permanente com os alunos, com os espaços, com as práticas e com ele próprio. O professor competente deve agir com perspicácia, intuição e “talento artístico” (Schön, 2000, p. 22).
Os artistas-professores não são, assim, apenas artistas que ensinam, o conceito pressupõe, em vez disso, uma estreita relação entre os processos artísticos e os processos de ensino, entre pensamento artístico e pensamento pedagógico. (Daichendt, 2010, p. 10) Esta relação foi eficazmente definida por Efland, que providenciou uma perspetiva aprofundada das diferentes formas e teorias de ensino artístico, organizadas segundo paradigmas de ensino artístico, relacionando ideias que têm fundamentos comuns. (Daichendt, 2010, p. 17) No entanto, “De acordo com Arthur Efland (…), as correntes que define não devem ser interpretadas como limites rígidos que seccionam de forma categórica a história da Educação Artística mas são uma possibilidade para a periodização da sua ação e pensamento.” (Silva, Carolina, 2010, p. 22) Aliás, a educação artística deve integrar vários modelos e abordagens, de acordo com objetivos e conteúdos específicos. Cabe ao professor saber como aplicar estes modelos, não sendo necessário o enquadramento num modelo específico, mas sendo útil o conhecimento de todas as possibilidades e do que já foi escrito e revisto acerca da arte e da educação.
Devemos situar-nos, de forma otimista e positiva, no universo de multiplicidade que teve início com o pós-modernismo, em que o artista é um produto e um produtor cultural, em que o conhecimento é uma construção social e a identidade do sujeito é incerta, em que se procura constantemente e nessa procura nos encontramos. Assim, em consciência, se podem educar pessoas que pensam e agem de forma crítica e contextualizada, de alguma forma propositada e diversificada.
Enquanto professores, precisamos desse enquadramento artístico e teórico, uma base intelectual e também emocional, que guie as decisões que tomamos acerca do que ensinamos e porquê. (Pazienza, 1997, p. 42) A propósito, segundo Jennifer Pazienza, precisamos perceber (Pazienza, 1997, p. 43):
>Em que acreditamos acerca do nosso trabalho como artistas.
>Como nos definimos como artistas.
>Como nos posicionamos em relação aos alunos.
>Quais os princípios, qual a filosofia pela qual tomamos decisões fundamentadas sobre o que ensinamos e porquê.
>No que acreditamos acerca das escolas.
>Na educação em geral, qual o posicionamento e o papel da educação artística.
Neste definirmo-nos como professores, a educação torna possível que nos reinventemos como artistas. (Pazienza, 1997, p. 45) Decidir o que ensinar é assim (tão difícil) como decidir o que pintar...
Acrescento ainda uma reflexão mais pessoal: como artista-professora, sinto a satisfação de conseguir ajudar a gerar conhecimento, ajudar a fazer pensar, na construção de processos artísticos. Como na criação de uma pintura, por exemplo, trabalhamos sem saber exatamente o que vamos criar, sabendo que é no processo de gerar formas que estas acabem por se definir. De alguma maneira conseguimos agir para alcançar o que se vai idealizando.
Da mesma forma, agimos perante os alunos, englobando no processo de ensino-aprendizagem aquilo que eles nos dão, a partir de uma proposta que é nossa (uma proposta que passa a pertencer-lhes). E, no resultado, é já difícil perceber onde acaba a intervenção da nossa vontade e começa algo que é inteiramente pessoal, de outros. Às vezes, é difícil acreditar que efetivamente fomos nós que ajudámos a criar aquilo...
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